Este é o quinto e penúltimo artigo da série A Vida que Vale a Pena Ser Vivida — e, sem dúvida, o mais controverso.
Se você, estimado leitor, ainda não leu os textos anteriores, recomendo que volte a eles antes de prosseguir. Ler este capítulo isoladamente pode reduzir a força e a clareza do percurso que venho construindo.
Dito isso, reconheço que você provavelmente reagirá a este aviso conforme as forças internas e externas que o trouxeram até aqui. Em outras palavras, é razoável supor que, se você prosseguiu com a leitura, não poderia realmente escolher outra coisa além daquilo que o seu cérebro já havia determinado antes mesmo de você ter consciência da decisão. Ou seja: será que exerceu o seu livre-arbítrio, ou simplesmente seguiu o fluxo das causas que o conduziram até aqui?
Ao longo das próximas páginas, apresentarei argumentos que questionam justamente a existência desse livre-arbítrio. Isso pode soar desconfortável ou até moralmente provocador para alguns. Por isso, peço apenas uma gentileza: não atire no mensageiro.
Mas por que discutir livre-arbítrio num ensaio sobre como viver uma vida plena?
Porque a forma como entendemos nossa “liberdade de escolha” molda profundamente a maneira como interpretamos nossos erros, acertos e responsabilidades. A maioria de nós vive como se fosse totalmente livre para decidir — quando, na verdade, grande parte do que fazemos é determinada pela genética, pela formação e pelos condicionamentos que nunca escolhemos e sobre os quais não tivemos controle algum.
Reconhecer que nosso livre-arbítrio é muito mais limitado do que imaginamos não diminui nossa humanidade; ao contrário, pode ampliar nossa compreensão de quem somos e nos tornar mais generosos conosco e com os outros. Essa consciência afeta diretamente a maneira como vivemos: muda nossa relação com a culpa, o arrependimento, o mérito, o perdão, as expectativas irreais que projetamos sobre nós mesmos e o tipo de responsabilidade que faz sentido assumir.
Entender esses limites é um passo essencial para viver uma vida que vale a pena ser vivida — com mais leveza, realismo e serenidade.
A tradição ocidental e a ideia de liberdade
A tradição judaico-cristã inaugurou a ideia de liberdade como eixo da moralidade: já no Gênesis, a história de Adão e Eva gira inteiramente em torno da possibilidade de escolher e arcar com as consequências. Sem escolha não há culpa; sem culpa não há pecado; sem pecado não há redenção. Essa noção atravessa a matriz ocidental e se torna o pano de fundo de praticamente toda reflexão posterior sobre responsabilidade.
No mundo greco-romano, Aristóteles (384–322 a.C.) afirmou que somos livres para deliberar racionalmente, e é justamente essa capacidade de escolher entre alternativas que nos torna responsáveis por nossas ações. Os estóicos aprofundaram essa visão ao sustentar que a marca distintiva do humano é a razão: a capacidade de examinar um impulso, julgar suas causas e decidir se vale a pena segui-lo. Para eles, o ser humano não é escravo das paixões; possui a faculdade racional de assentir ou recusar uma ação.
Séculos depois, Santo Agostinho (354–430) transformou o livre-arbítrio em pilar da teologia cristã ao argumentar que sem liberdade não há responsabilidade moral. Já na modernidade, Immanuel Kant (1724–1804) levou o debate a um novo patamar ao afirmar que a liberdade é a própria condição da moralidade: somos livres quando agimos não apenas por desejo ou interesse, mas porque reconhecemos racionalmente o que é certo. Sem essa capacidade de escolher entre agir por impulso ou por convicção, dizia ele, não existe moralidade possível.
A grande ruptura
A grande ruptura vem justamente do meu filósofo favorito: Baruch Spinoza (1632–1677). Poucos pensadores foram tão originais e tão radicais quanto ele. Aos 23 anos, Spinoza foi expulso da comunidade judaica de Amsterdã por suas ideias pouco convencionais sobre Deus, natureza e liberdade humana. Dedicou-se, então, a reconstruir a filosofia sobre bases estritamente racionais. E, nesse percurso, criou o primeiro grande sistema determinista da história moderna.
Spinoza parte de uma ideia simples e devastadora: tudo o que existe é uma única substância — Deus ou Natureza — e tudo o que acontece deriva necessariamente das leis dessa substância. Nada escapa à causalidade universal. Ou seja, toda ação deriva de alguma causa, e não poderia ser diferente do que é.
A partir disso, ele chega a uma conclusão inovadora e profundamente disruptiva para seu tempo: o livre-arbítrio, tal como normalmente o entendemos, não existe. A sensação de que “poderíamos ter escolhido diferente” é apenas isso: uma sensação. Na realidade, cada pensamento, desejo ou decisão nasce de causas anteriores que nos determinaram por completo: nossa biologia, nossas experiências, nossos afetos, o ambiente, os encontros, tudo aquilo que veio antes do momento da decisão. Não existe, nessa cadeia de causas, um ponto onde a vontade humana age de forma independente. Não há brecha para o “poderia ter feito diferente”. Diante das mesmas exatas circunstâncias, tudo seria exatamente igual.
Como ele escreve: “Os homens se enganam ao crer que são livres; tal opinião consiste apenas em serem conscientes das suas ações e ignorantes das causas pelas quais são determinados.”
Essa frase resume o núcleo do determinismo espinosano: não somos livres no sentido absoluto; apenas desconhecemos as forças que nos levam a agir. Por isso, para Spinoza, liberdade não é fazer o que queremos, mas compreender por que queremos o que queremos.
Essa visão atravessou séculos e influenciou profundamente toda a filosofia posterior. Dois séculos depois, Arthur Schopenhauer (1788–1860) ecoaria esse raciocínio ao afirmar: “O homem pode fazer o que quer, mas não pode querer o que quer.” Nossos desejos não surgem do nada; são moldados por fatores profundos, muitas vezes inconscientes, que vão da biologia às experiências de vida.
A contribuição da neurociência
Foi no século XX que a ciência experimental entrou de vez nesse debate milenar. Nos anos 1980, o neurofisiologista Benjamin Libet (1916–2007), então professor da Universidade da Califórnia em San Francisco (UCSF), realizou um experimento que se tornaria um marco na história da neurociência. A ideia era simples: pedir a voluntários que realizassem um movimento banal — dobrar um dedo ou mover o punho — no exato momento em que “sentissem vontade”, enquanto seus cérebros eram monitorados por eletroencefalograma e suas percepções de decisão consciente eram registradas com precisão.
O objetivo era responder a uma pergunta direta e profunda: o que vem primeiro, a decisão consciente ou a preparação inconsciente do cérebro? O resultado surpreendeu os próprios pesquisadores. Libet descobriu que, cerca de 300 milissegundos antes de o indivíduo declarar conscientemente a decisão de agir, o cérebro já apresentava o chamado potencial de prontidão, um sinal elétrico que antecede a execução de um movimento voluntário. Em outras palavras, o cérebro encaminhava o resultado antes de a consciência ter notícia da decisão.
Décadas depois, estudos ainda mais sofisticados em neuroimagem ampliaram essa descoberta, identificando padrões neurais que precedem escolhas simples vários segundos antes de a consciência perceber a decisão.
É verdade que alguns pesquisadores atuais reinterpretam o potencial de prontidão como mero ruído de fundo que só se transforma em ação quando ultrapassa determinado limiar (Schurger et al., 2021; Travers et al., 2021). Ainda assim, mesmo sem oferecer provas irrefutáveis da inexistência do livre-arbítrio, os experimentos iniciados por Libet inauguraram a moderna neurociência da decisão e mostraram que grande parte do que chamamos de escolha consciente pode, na verdade, emergir de processos automáticos e inconscientes.
Mais recentemente, essa visão ganhou força com um dos maiores defensores contemporâneos do determinismo radical: Robert Sapolsky (1957–). Biólogo, antropólogo e neurocientista, professor de biologia, neurologia e neurocirurgia em Stanford, Sapolsky é hoje uma das vozes mais influentes no estudo do comportamento humano. Tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente, e há inúmeros vídeos seus no YouTube explicando suas ideias e apresentando seu livro mais recente, Determined (2023).
Nesse livro, Sapolsky sustenta de forma incisiva que cada ação humana é o resultado inevitável de uma cadeia de causas, que inclui fatores genéticos, hormonais, traços biológicos moldados no útero, experiências da juventude, cultura, ambiente social e até o contexto histórico que envolve cada pessoa. Nada surge do nada, diz ele; todo comportamento é sempre o desfecho necessário de múltiplas forças atuando muito antes de se ter a consciência da decisão tomada.
Ou seja, segundo essa visão determinista, você não poderia decidir outra coisa além do que decidiu, pois todo ato é consequência inevitável de fatores exógenos e endógenos acumulados até o instante da decisão. Seu cérebro processou o impulso antes de você ter consciência de que havia decidido. A “decisão” consciente é apenas o último passo da cadeia.
Sam Harris (1967–), filósofo e neurocientista, segue a mesma linha. Em Free Will (2012), ele argumenta que pensamentos, impulsos e intenções simplesmente surgem na mente — você não os escolhe. A consciência chega depois, tentando organizar esses eventos numa narrativa coerente. Para Harris, isso não deixa margem para dúvida: o livre-arbítrio é uma ilusão. Diz ele: “We are free to do what we want, but we are not free to want what we want.”
Como fica a responsabilidade?
Mas nada disso implica que alguém esteja isento de responsabilidade pelos próprios atos. Se abolíssemos a responsabilidade, a convivência humana seria impossível. O sistema jurídico existe justamente para regular comportamentos, proteger inocentes e ajustar incentivos. Mesmo num universo determinista, as consequências importam. Continuamos responsabilizando pessoas não porque elas agiram “fora da cadeia de causas”, mas porque essa responsabilização afeta o comportamento futuro dos outros e evita o caos social.
Também é essencial não confundir determinismo com pré-determinismo ou fatalismo. O pré-determinismo afirma que tudo já está decidido de antemão, como se a vida fosse um roteiro fixo escrito no início dos tempos. O determinismo, tal como defendido por Spinoza e Sapolsky, não diz isso. Ele afirma apenas que cada evento — inclusive nossas decisões — é o efeito inevitável das causas que o antecedem: genética, hormônios, passado, ambiente, cultura, contexto. Não há destino programado; há simplesmente uma relação causa e efeito. O futuro não está escrito, mas será sempre o resultado necessário das condições do momento.
Faz sentido?
Vamos refletir. Como você poderia decidir algo que não fosse moldado pela sua genética (nature) e pela sua formação e experiências (nurture)? Que outros fatores, além desses dois, poderiam influenciar uma decisão humana? Quando colocamos tudo na mesa — traços biológicos, estrutura cerebral, hormônios, memória afetiva, valores aprendidos, ambiente social, cultura e contexto histórico — o que sobra?
E, se nada sobra, com base em que você poderia ter decidido de forma diferente? Onde estaria essa “instância livre”, separada do corpo, da mente e da história, capaz de escolher de forma independente das causas que a constituem? Para Sapolsky, não existe esse terceiro elemento misterioso. Não há um “eu puro” pairando acima da biologia e da cultura.
Assim, seu argumento é simples e poderoso: esse conjunto — biológico, psicológico, social e histórico — não apenas influencia, mas efetivamente determina o que você acaba escolhendo. A decisão consciente é apenas o capítulo final de uma história que começou muito antes de você perceber que estava “decidindo”.
O que isso muda?
Se essa visão estiver correta, ela, paradoxalmente, pode nos tornar pessoas melhores.
Para começar, essa visão corrige excessos do orgulho e da soberba.
Será que tudo o que você fez e realizou é realmente “seu mérito”? Não estou sugerindo que você adote uma modéstia artificial, nem que finja que suas conquistas não existiram. Se elas existiram, constituem fatos — e fatos não desaparecem. O ponto é outro: se você der algum crédito aos argumentos aqui apresentados, talvez comece a perceber que aquilo que chamamos de “mérito pessoal” depende de uma cadeia de fatores sobre os quais você nunca teve qualquer controle.
Pense nisso. No que consistem suas qualidades mais admiráveis? Inteligência? Disciplina? Coragem? Resiliência? Cada uma delas foi moldada por elementos que você não escolheu: sua genética, o ambiente familiar onde cresceu, os incentivos ou traumas da infância, as oportunidades que surgiram, os professores que teve, os encontros certos na hora certa e os acasos que poderiam facilmente ter sido outros. E, não menos importante, foram moldadas também pelos perrengues pelos quais você passou. Aqueles desafios que, embora difíceis na hora, acabaram fortalecendo traços que você talvez jamais tivesse desenvolvido de outra forma.
Até mesmo o “esforço e resiliência”, virtudes tão celebradas, dependem de um conjunto de capacidades não cognitivas que você recebeu sem pedir: foco, persistência, autoconfiança, tolerância à frustração. Nada disso foi obra exclusiva sua.
Quando olhamos por esse prisma, a noção de mérito absoluto simplesmente perde o sentido.
E isso, longe de nos diminuir, pode ser profundamente libertador e nos ajudar a viver a vida na sua plenitude. Nos impede de inflar o peito com orgulho exagerado e também nos livra do peso sufocante da culpa. Mostra que somos menos autores solitários da própria vida e mais participantes de uma história maior, moldada por múltiplas forças que nos antecedem e nos atravessam.
E, quando compreendemos isso, algo importante muda. Começamos naturalmente a (peço que leia com calma):
• substituir julgamento por compreensão;
• trocar culpa e o arrependimento por aprendizado;
• trocar soberba por humildade;
• e enxergar o outro com mais empatia.
Ainda mais relevante: se nada é inteiramente “meu”, então a emoção mais adequada à vida não é orgulho, mas gratidão.
Gratidão porque nada do que somos foi conquistado sozinho. Gratidão porque talento, disciplina, oportunidades e até a sorte são, em grande medida, dádivas ou simples contingências da vida. Gratidão porque cada pessoa que cruzou o nosso caminho, para o bem ou para o mal, fez parte dessa cadeia de causas que nos trouxe até aqui.
Pense nisso: a gratidão é a expressão emocional do determinismo. É o deslocamento do “eu mereci” para o “eu recebi”. É o reconhecimento de que nossas vitórias não são apenas fruto da nossa vontade, mas de uma teia infinita de fatores que nos antecedem.
Conclusão: um modo mais lúcido e realista de viver
Talvez eu não tenha convencido você a aceitar o determinismo radical de Sapolsky. Mas, diante dos argumentos apresentados, acredito que podemos concordar que, se o livre-arbítrio existe, ele é bastante limitado.
Nesse sentido, talvez a atitude mais sábia seja simples: começar cada dia com uma breve declaração silenciosa de reconhecimento e gratidão.
Nada do que sou é apenas meu.
Muito do que me constitui nasceu de causas que me antecederam — e que nunca estiveram sob meu controle.
E por isso, eu agradeço.
Esse pequeno gesto de humildade tem um poder enorme: dissolve a arrogância, suaviza os julgamentos, nos reconcilia com nossas imperfeições e nos aproxima dos outros. Ao aceitar que não somos os autores absolutos de nós mesmos, tornamo-nos mais humanos, mais leves, mais reais.
Talvez aí resida uma das bases emocionais mais sólidas para uma vida que realmente vale a pena ser vivida: uma vida guiada não pela ilusão de controle total, mas pela lucidez, pela gratidão que nasce do fato de reconhecermos que somos parte de uma história muito maior do que a nossa própria vontade.
Jair Ribeiro é empresário do setor financeiro, tecnologia e educação. É o fundador e presidente da Casa do Saber e da Associação Parceiros da Educação. Passou o último ano em Harvard no programa Advanced Leadership Initiative, que apoia líderes do setor privado a transformarem sua trajetória em projetos de impacto social.
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